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Entrevista realizada pelo escritor Nelson Hoffmann e publicada no jornal O Nheçuano nº 33, de Roque Gonzales, RS , em março/abril de 2017, às páginas 6 e 7. Foi esta uma das últimas entrevistas dadas pelo nosso saudoso Cícero. O jornal estava no prelo quando ocorreu seu falecimento.
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Cícero Galeno Lopes, à medida que eu avanço em minhas pesquisas literárias, caio em surpresas. O seu caso foi típico. Você sabe, sou velho colega e amigo de seu mano, o José Antônio, escritor que assina como Vasco de Sant'Anna. Jamais desconfiei que ele tivesse um irmão, também escritor. E que escritor! Por isso, por favor, vamos conversar, um pouco, a seu respeito particular, de sua vida, de sua obra e de um pouco dos muitos conhecimentos que possui. Confesso: eu mesmo quero conhecê-lo melhor e, aposto, a quase unanimidade dos leitores de nosso jornal. Comecemos, pois, por seus primeiros anos de vida: origens, infância, escolaridade, ambiente familiar, social...
Fui menino do campo. Morávamos a seis quilômetros da cidade, o que nos facilitou frequentar escola.
Descendo de açorianos e guarani pelo lado paterno e de bascos, pelo materno. De um lado, homens a cavalo em movimento por planuras a perder de vista. Doutro, pequenos proprietários, agricultores e pequenos criadores de gado leiteiro, ovinos, equinos e aves. Tive infância feliz.
O ambiente da casa paterno-materna era o que na época em Uruguaiana se chamava de estanciola, com muitas pessoas convivendo: família, empregados permanentes e filhos deles; também os havia temporários, além de parentes e amigos. Era como vilarejo, com casas, galpões, moinho d'água, energia elétrica, lavouras, pomar etc. Meus pais e, por consequência, nós lhe chamávamos chácara. Criavam-se bovinos de produção de leite e ovinos de finalidade lanígera. Havia vários cavalos mansos de usos variados. Nessa época, preferia o petiço aos livros e à escola. Ao andar a cavalo pelo campo, usufruía de esfuziante sensação de liberdade e felicidade. A casa e o galpão foram minhas primeiras escolas. Nessa época apareceram por lá geladeira (a querosene), máquina de lavar roupa, trator.
Os anos que medeiam a infância e a etapa adulta da vida, a adolescência-juventude, são, normalmente, os anos definidores de uma personalidade e de toda uma atividade e vida humana. Que pode nos contar desse período?
Quando tinha catorze anos, a família mudou-se à cidade. Estávamos em casa com os pais, então, apenas minha irmã e eu. Meus irmãos, Matias e Zé, já tinham tomado os rumos das vidas que cada um escolhe ou pode escolher. Minhas tendências então - meus gostos mais pronunciados - eram escrever, ler, observar.
E agora, sim, quem é Cícero Galeno Lopes? O homem de família, vida social, vida profissional, conquistas, decepções…? Estamos atentos, somos todos leitores ansiosos.
Tenho dois filhos, Ariadne, juíza, e Joaquim Rodrigo, microempresário. Tenho dois netos: Thaís e Matheus. Há vinte anos vivo com Márcia, companheira gentil, delicada, dedicada.
A vida profissional já ficou um tanto exposta no minicurrículo. Minha dedicação e meu esforço creio que nasceram, pelo menos em grande parte, do meu profundo gosto pela atividade profissional nas Letras. O que consegui, no que respeita à formação e ao trabalho de professor, também brotaram disso.
As decepções vão por conta do mundo externo,desse insano modo de não viver, de destruir, desse apossar-se por parte de alguns poucos do que deveria pertencer a todos. Outra forma de decepcionar é esse uso personalista, vulgar e interesseiro de jogar com a palavra verdade, sem sequer conceituá-la nem, ao menos, tentar apropriar-se de noções a respeito dela. Ainda uma terceira: o domínio das populações sem livros, através de meios de comunicação alienantes. Noutras palavras, o lixo televisivo, radiofônico, internético, e o futebol, letargia eruptiva em gritos. A respeito de ler ou não ler, vale lembrar Quintana: "Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem".
E o Cícero Galeno Lopes Escritor? Como trabalha, métodos, estudos, horários, rotina, manias...?
Ainda adolescente, escrevia à mão. Com aproximadamente dezessete anos, ganhei de meu pai a primeira máquina datilográfica, portátil, de fita. Nesse tempo escrevi muito: parte mantenho até hoje em pasta, na biblioteca; a maioria foi fora. Certo professor, aí pelos idos de 1958, aplicou teste vocacional a quem estivesse interessado. Participei da avaliação. Resultado: escritor de contos e novelas. Foi revelação inesquecível. Não conseguia deixar de pensar nisso. Algo como um ano passado, tinha já dois textos que eu pretendia fossem peças teatrais. Submeti-os a outro professor e a um colega. O professor foi reticente; o colega, demolidor. Apesar disso, não desisti. Foi então que, através do CTG da escola, criamos programa de rádio na única emissora então existente em Uruguaiana. Ia ao ar aos domingos, creio que aí por 19 horas. Conseguimos gravador emprestado com um dos patrocinadores. A máquina tinha dimensões físicas de aproximadamente 40x30x20 centímetros, com rolo de fita. Aos sábados tarde, reunia um grupo de colegas cola e uma menina da escola de freiras da cidade, na minha casa. Era o elenco. Gravávamos um capítulo, ou seja, ato, e, a cada emissão do programa, o irradiávamos. Não preciso dizer que era maravilha... pra nós. Como quase todos sabem, professor trabalha muito. Assim, durante bom tempo, trabalhei na produção de textos à noite, depois do terceiro turno de trabalho no magistério. Os fins de semana eram também dedicados a ler e escrever. Lia também todas as noites. O livro era o companheiro de cabeceira até que o sono me dominasse.
Atualmente, minha vida é feita de escrever, ler, escutar música orquestral pela internete, ver filmes e documentários, conviver.
Sua obra é bem expressiva e de alto valor literário, tanto em prática quanto em teoria. Comecemos pelo lado teórico, o dos ensaios. Professor que sabemos ter sido, trabalhou, principalmente, em temas que abordam o fazer literário e a compreensão de seu produto, o texto. Curiosidade: esses ensaios, sempre modelares, tinham destinatários específicos, eram produto de exposições acadêmicas, queriam lançar (como lançaram) novas luzes sobre pontos controversos ou pouco entendidos, ou...?
Os ensaios, talvez com direito a essa classificação, começaram a nascer a partir da especialização e se aperfeiçoaram um pouco a partir do mestrado. Sempre tiveram objetivo previamente estabelecido. Ora se destinaram às cadeiras da especialização e do estrito senso; ora foram dedicados a conferências, palestras, mesas-redondas etc. Estão espalhados em periódicos especializados, livros coletivos e próprios, na internete (em forma de textos ou vídeos). Como me dediquei especialmente à literatura e à cultura sul-rio-grandenses, grande parte dessa produção foca essa temática.
A prosa e o verso, ou seja, a ficção e a poesia, são os gêneros mais procurados e apreciados. Em ambos os gêneros, chama aatenção o estilo, um misto de autêntica fala regional com fortes toques de cultura clássica universal. Buffon já anotou que o estilo é o homem. Esse seu estilo é-lhe natural, veio de dentro de si mesmo, sem esforços, ou é um aprendizado exercitado para chegar a tão completo nível estilístico?
Fico grato por falares em regional. Vai grande distância técnica e ideológica entre o que se classifica como regional e o que se costuma denominar regionalista. Procurei um estilo. O primeiro que julguei possível foi o dos contos, que por suposto leva o leitor (que busca apenas histórias) a certas dificuldades de leitura. Creio que não usarei mais essa técnica. Por ser técnica, é produto de arranjos linguísticos fônico-semânticos que precisa ser desenvolvido ao escrever-ler-escrever. Nenhuma forma é mais universal que o local, como já ensinaram alguns, entre os quais Machado de Assis.
Dos contos aos poemas, como parece naturalmente concebível, há muitas diferenças. Talvez mesmo, quase sempre, seria improvável supor o mesmo autor entre uns e outros.
Nos romances, os procedimentos são diferentes dos anteriormente comentados e entre si, ainda que em parte. Em Principados, há elaboração de relatos, memórias obtidas por notícias e por reflexões, ironia e lirismo. Em O espantalho e o sonho, o texto está assentado sobre um triste fato lamentavelmente histórico, ocorrido no RS, em 1938. Nele não há memória por observação pessoal, porque não fui contemporâneo do que aconteceu. O que mais há nele é estudo desse episódio terrível, protagonizado por forças econômicas, políticas e policiais.
Um destaque para sua ficção, onde lida com o conto e com o romance. Ao que temos aqui, são três livros de contos (Conto e ponto, A curva da estrada e A viagem), mais um romance (Principados). Fale-nos por partes sobre essa sua obra ficcional, que é sempre a que mais chama a atenção do leitor. Primeiro, os livros de contos, que quase nos parecem "causos", com seu conteúdo telúrico e humano regional, mas sempre em consonância com uma visão e cultura universais. Depois dos contos, temos esse quase estranho Principados, tão nosso, aqui de Brasil e de gaúcho e de chão, tão real e surreal, ao mesmo tempo. Conte-nos os segredos de tamanha arte.
Talvez tenhas razão em classificar os contos de causos. Quase todos têm esse formato técnico. São falas marginais, vozes de personagens analfabetos ou quase. Vivências e sofrimentos impregnam essas narrativas. Em cada um, tem pelo menos um ou dois personagens que brotaram de pessoas históricas, com quem convivi ou simplesmente ouvi. Como disse antes, a casa e o galpão foram minhas primeiras e marcantes escolas. São verdadeiros, embora, como sabemos, não sejam constituídos de fatos ocorridos. O que aconteceu acabou. Os jornais de notícias, p. ex., dizem que falam do que acontece; uns até dizem que falam a verdade. Apesar disso, depois de lidos (quando o são), se transformam em material descartável e vão à mesma coleta de lixo reciclável. A obra de Lopes Neto, p. ex., diferentemente, não afirma que o que expõe são fatos ocorridos. Ao deixar de afirmar que são verdades, confirma-se como verdadeira. É, no entanto, disputada e bem guardada em bibliotecas, pra nunca mais deixar de ser o que é e de receber mesmos e novos leitores, formar consciências e desenvolver imaginários. Manter bibliotecas é dispendioso: gente especializada, climatização, digitalização de dados e dos próprios textos, eliminação de parasitas, recuperação e reposição constante de material...
Retorno à questão dos estilos.
Os romances têm considerável variação de estilo com relação aos contos e entre si igualmente, como já ficou dito anteriormente. Principados é memória-ficção a respeito do preparo, sustentação e posteriores do golpe militar de 1964, observados a partir de ficcional município localizado na Campanha do RS. O espantalho e o sonho focaliza o massacre dos Monges Barbudos no RS, na década de 1930, em região de minifúndios. O tema requer outro tipo de tratamento estilístico e ideológico. As vozes narrativas dum e doutro são diferenciadas, em razão das condições dos personagens e de manejo discursivo.
Quem vive e lida num mundo acadêmico, tem leituras, conhecimentos e informações sempre disponíveis e delas se abastece de verdade, como é o seu caso. Somos sequência cultural de um mundo cultural anterior. Pergunta: Há influências anteriores - literatura, música, pintura etc... - que o afetaram? Fontes de que bebeu?
Meu caro Nelson: prefiro falar em diálogo, ou teoria do dialogismo, a falar em influência(s). Ensinou-nos nosso avô grego Sócrates que os humanos só obtemos as possíveis e precárias verdades mediante o diálogo (dia + logos, através da palavra). O russo Mikhail Bakhtin aplicou magistralmente isso ao estudo da literatura. Pertenço a essa filiação teórica.
Meu umbigo literário se nutriu e nutre de muitos textos, tantos, que se torna sempre injusto citar apenas alguns autores. Tentando organizar sequência histórica da literatura em nosso idioma, eis a que posso reduzir minhas fontes de aprendizado e dívidas: Camões, Gregório de Matos, Basílio da Gama, Gonçalves Dias, Castro Alves, Alencar, Caldre e Fião, Machado de Assis, Raul Pompeia, Cruz e Sousa, Alceu Wamosy, Lopes Neto, Lobato, Valdomiro da Silveira, Mário de Andrade, Quintana, Cyro Martins, Pessoa, Cecília Meireles, Donaldo Schüler (literária e teoricamente)... Em outras línguas, Lazarillo de Tormes (anônimo), José Hernández, Maupassant, Saint-Exupéry... No campo da música, destaco Villa-Lobos, Joaquín Rodrigo e Astor Piazzolla. Na pintura, Almeida Júnior e Pablo Picasso. Na escultura, os gregos antigos.
Hoje, no Rio Grande do Sul, como enxerga a Literatura e a produção literária? E no Brasil? E no mundo?
Nossa literatura é marginal com relação ao Brasil. Melhor talvez dizer - marginalizada. Os grandes textos da nossa literatura não são apenas quase desconhecidos no resto do país, como ainda têm espaços sonegados, mesmo em obras acadêmicas analítico-críticas que se dizem de âmbito nacional. É o caso de Caldre e Fião, quase completamente ignorado. Lopes Neto tem sido aos poucos resgatado do desconhecimento.
Diz-se que a literatura gaúcha não passa o Mampituba (se é que de fato não passa), porque simplesmente é desconhecida. É desconhecida porque lhe falta divulgação. Falta-lhe divulgação, porque não há mostras de interesse pela formação nem pela educação, campo aberto à atuação dos meios de comunicação manipulados e manipuladores. É preferível apostar no futebol e no carnaval, porque trazem muito dinheiro e dividendos políticos desfrutáveis, e em autores acompanhados pelos suportes de jornais, tevês, rádios e internete, mesmo que tenham contribuição contraproducente. No meio acadêmico há consenso, segundo o qual é mais eficaz apostar nas amizades do que na qualidade do material editado, seja ensaístico, seja literário. Nas palavras do poema tido pela crítica em geral como iniciador da literatura brasileira, "Bem mais no-lo mostra a experiência / Em poder mais que a justiça a aderência" (Ben to Teixeira).
No Brasil, a situação não parece muito diferente. Editoras comerciais em geral preferem reeditar em formas mais baratas o que já é conhecido do público potencialmente comprador. São raras as editoras que não cobram custos e lucros dos autores, mas felizmente ainda existem.
Os franceses inventaram isso de grande literatura e literaturas menores ou periféricas. A grande é a europeia; como centro do centro, a francesa, claro! As menores, as marginais são as outras, como a nossa. Muitos de nós aceitamos isso sem discutir... Nomes europeus - e só europeus - registram intercontinentalmente, p. ex., o dia internacional do livro. Será que leram tudo de todos os tempos, pelo planeta a fora?
Não me arriscaria a comentar literatura no mundo. Além de ser produção imensa, não teria como lê-la e apreciá-la nem na menor parte. O que poderia tentar é falar a respeito de parte da literatura estrangeira que chega ao Brasil. Nesse caso, observo que os livros são transformados em filmes, que simultaneamente os divulgam e dão-lhes os rumos das leituras dos respectivos diretores. Não tenho grande esperança a esse respeito, porque os livros que nos poderiam ajudar, especialmente sob o ponto de vista ideológico, são pouco lidos e substituídos - como há pouco escrevi - por filmes facilmente manipuláveis. Creio que valham os exemplos de Fahrenheit 451 (Bradbury) e 1984 (Orwell). As grandes safras são outras, através do ideologicamente infesto ou alienante e estilisticamente empacotadas, com bruxinhos sem possibilidades de plausibilidade. Como nem todos poderiam dizer que a literatura é, esse tipo de negócio bilionário periga passar às pessoas como exemplo de exitosa literatura.
Como conclusão, caro Cícero Galeno Lopes, a palavra fica toda sua. Disponha.
O que me move em literatura é a injustiça. Não consigo me calar diante dela. Tanto me movem as injustiças sociais, quanto as que sofrem autores às vezes de excelentes textos. Minha produção (me permite dizer) literária quer ter esse destino, não tão diferente dos ensaios (quer a respeito das camadas sociais sem voz, quer a respeito de autores desconhecidos ou esquecidos, pra dizer o menos chocante). Vale lembrar aqui do peruano Julio Ribeyro, em obra intitulada La palabra del mudo.
Dou atualmente prioridade à poesia. Leio mais poemas que prosa. Percebo na poesia a literatura mais bem arranjada. Me encontro nela mais completo, por ser ela mais completa e simultaneamente mais sucinta.
A palavra é a matéria-prima da literatura. Por isso é a mais completa das artes. A expressividade de significantes fônicos e semânticos e a concorrência da sugestividade fazem do verso misto de comunicação-expressão linguística e musical. Esse composto gera agradabilidade auditiva e desempenho completo (quanto possa sê-lo) do material linguístico trabalhado. A poesia exige bem mais que a prosa do autor e do leitor, os dois polos da comunicação literária.
Como comumente hoje a própria escola (incluída a superior) negligencia a literatura, é difícil encontrar-se quem a saiba conceituar. Se algo nos foge ao conhecimento, que valor pode ter pra nós?
Quero também aproveitar pra lembrar que é necessário antes de tudo falar do que é nosso, da nossa literatura. Se não falarmos nela, ninguém o fará em nosso lugar.
A imaginação é o maior poder do homem, só menor que o de transferir a vida. Que seríamos sem imaginação? O imaginário social é a maior herança cultural que os povos têm. O imaginário alimenta a imaginação (individual), que também o modifica. Povo que desconsidera seu imaginário está fadado ao aniquilamento cultural pela absorção da própria cultura por outras. Se deixar de ser o que é, nunca será o que pretende, nem retornará a ser o que foi.
A literatura é gerada pelo real e pela realidade, por isso é o maior cabedal de memória social que podemos ter. O real, segundo o mexicano Carlos Fuentes, é a conjunção do imaginário com a realidade concreto-sensorial. É precisamente nesse âmbito que atua o texto literário digno dessa classificação. A realidade concreto-sensorial é também indispensável ao texto literário, uma vez que a literatura que atua em culturas diferentes teria dificuldades de comunicação, porque os imaginários são (pelo menos parcialmente) distintos. Não há arte sem conexão direta com o mundo concreto- sensorial, porque o cérebro humano precisa desse referencial, a fim de concatenar sentidos.
Por NELSON HOFFMANN
 
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