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Autor: Olegar Fernandes Lopes |
Texto publicado no sítio da ACE em 22/10/2011 |
SONHOS DE GURI |
Criado num rancho de santa fé, que ficava próximo
da casa do patrão, o dono da estância Bom Retiro, que se
chamava Dr. Eleu Salvador. Nos fundos do velho rancho havia um mangueirão
de pedras, daquelas construídas pelos escravos. No centro da
mangueira um pé de angico, certamente quando construíram a
mangueira ele já estava ali, dado ao seu porte, uns 15 metros de
altura, com um tronco liso de tanto o gado se roçar e de
palanquear potro xucro. Ao lado da mangueira, como em quase todas as estâncias,
havia duas figueiras de copas redondas, que, de longe, se pereciam com
dois enormes guardas chuva, verdes. Até a idade de freqüentar
a escola, o guri se criou pela volta do rancho, fazendo companhia para mãe,
enquanto brincava de tropa de osso com o irmão mais novo. Como
todo guri da campanha, esta era a brincadeira preferida, pois, além
de ouvir do pai quase todas as noites histórias de tropeadas, via
da porta do rancho, as tropas passando pelo corredor que levava até
a charqueada Santa Fé.
Durante o mate de todas as tardinhas, quase noite, o pai contava
histórias do seu tempo de tropeiro, lida que iniciou quando tinha
13 anos, na companhia do seu pai, o velho Raimundo, que foi tropeiro até
quando pode bolear a perna para montar no seu tordilho negro. Nas suas
histórias contadas à luz do candeeiro de querosene o pai
nunca contou, porque largou a lida de tropeiro - fato que gerava
curiosidade na cabeça dos guris. Não queria que os filhos
levassem a mesma vida, mas este era um sonho de guri, ser tropeiro, como
o pai fora. Ser um tropeiro responsável e destemido, como o pai
que nunca perdeu um único boi do patrão em suas mais de
mil tropas que conduziu pelos corredores sem fim. Mas o certo era que o
pai não queria ver os filhos passarem pelos perigos e trabalhos árduos
que os tropeiros passam. Queria ver os filhos estudando numa faculdade
e, um dia, quem sabe, ser doutor, para não passar pelos trabalhos
que ele passou. Até falou com o Dr. Eleu, que ofereceu um quarto
na garagem da sua casa da cidade para o guri morar quando terminasse os
estudos na escolinha da professora Candoca. O sonho de guri era ser
tropeiro, assim como o pai, passar dias seguidos gritando com a boiada
pelos corredores, no verão, dormindo ao relento, tendo por teto a
copa duma árvore, acordar cedo, antes da estrela boieira
desaparecer no céu. No inverno, dormir em algum galpão de
beira de estrada, aquecido pelo fogo de chão, ouvindo o minuano
dar "oh de casa!" pelas frestas das paredes do galpão.
Mas o certo era que o dia do guri sonhador arrumar as tralhas e deixar a
estância Bom Retiro estava chegando, era uma questão de
dias. Na mala de garupa ia levar cuia, bomba e erva pura folha, pois
gostava de sorver um mate bem amargo, mate de macho, além duma
bombacha e um par de alpargatas, para usar na cidade grande, embora
corresse o risco de ser alvo de chacota quando saísse à
rua usando trajes da campanha. Não queria esquecer os costumes do
campo, não isto jamais, mesmo depois de formado doutor.
Chegado o dia da partida, na véspera, antes de dormir
despediu-se da mãe, pois ia sair bem cedo. Não queria
choradeira, quando a mãe despertasse estaria longe, lá na
estação esperando a maria-fumaça, queria que
ficasse na lembrança da mãe como despedida, apenas o apito
do trem. Nas férias ia voltar para o campo, matar a saudade da mãe
e do irmão e ajudar o pai no campo e, quem sabe, com os amigos
que ficaram na lida do campo, conduzir alguma tropa, para realizar o
sonho de guri tropeiro e não perder o contato com a liberdade do
campo, liberdade que sentia ao vento bater-lhe na melena, liberdade que
na cidade não encontraria. |